O Coletivo Mandala passará a publicar uma série de
relatos de pessoas LGBTTQ, serão histórias sobre seus questionamentos de
gênero, sexualidade, o processo de assumir-se ou não e questões relacionadas ao
preconceito.
Para hoje o Relato de número 1.
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Gênero
Por muito tempo fingi namorar um
homem. A arte da encenação não é fácil e desde pequena aprendi que as meias
verdades duram mais tempo que as mentiras completas. Assim, mudava apenas o que
era necessário e isso quase sempre era a flexão do gênero.
Minha namorada passou a ser meu namorado, as horas no
telefone eram com ele, o livro era dele, o perfume era dele, e se ele não vinha
me visitar era porque morávamos muito longe. Quase tudo verdade. Era incrível
como o câmbio de uma única letra quase sempre mudava toda a história.
O imaginário que as pessoas construíram do meu
“namorado fantasma” foi sendo fomentada por longos três anos. Para algumas
pessoas eu tinha coragem de chamar de canto para uma conversa em particular e
confessar meu crime em amar mulheres. Cheguei em um momento que não sabia mais
se o erro era a mentira do meu pseudo-homem ou efetivamente o meu
relacionamento lésbico, nem em qual ordem deveria me confessar.
Em várias ocasiões eu me confundia. Não sabia (e ainda
não faço a menor ideia) de como um homem se barbeia, tampouco entendo de pênis,
cabeças e veias. Nas rodas de mulheres sempre dava um jeito de fugir quando o
assunto era sexo, não saberia mentir sobre um possível tamanho de pinto. De
fato, em um mundo rodeado de machismo no qual é quase proibido a mulher se
descobrir, era no mínimo estranho meus conhecimentos sobre vaginas, clitóris e
orgasmos femininos.
Com o passar do tempo aprendi a usar palavras que não
expressassem gênero, a pessoa com quem namorava não tinha mais nome, era
somente meu amor e meu bem. Era somente a pessoa. Me via falando frases sem
sentido na tentativa de tirar o gênero. No lugar de falar: “Você está
resfriada?” dizia “Você está doente?”; ou “Você está cansada?” para “Foi
cansativo?”. Algumas vezes quando não conseguia pensar em modos neutros de
utilizar a linguagem tentava falar o gênero de forma tão rápida que quem
estivesse do meu lado não percebesse.
Todo esse dilema moral existia porque era
péssima em continuar com a mentira e isso aos poucos foi me afastando das
pessoas. Com as amigas da época da escola com seus sorrisos e filhos eu já não
fazia mais questão de manter tanto contato e na faculdade me aproximava cada
vez mais de quem já sabia. Não me sentia bem ao mentir, ao tentar esconder algo
tão bom pra mim. Cada vez que falava “meu namorado” era um soco que dava em mim
mesma.
Lembro de uma vez ter tirado uma foto com um amigo
para apresentar as pessoas que queriam porquê queriam ver o tal do meu
namorado. Tirei a foto, mostrei a uma pessoa e nunca mais tive coragem de fazer
isso. E para essa única pessoa que mostrei a tal da foto fiz questão de contar
tempos depois.
Já tem dois anos que não preciso mentir sobre a pessoa
com quem namoro, hoje o seu nome na agenda do meu celular é realmente o seu
nome. No entanto os questionamentos sobre a linguística binária permanecem e
até hoje é engraçado/embaraçoso quando alguém pergunta do meu namorado.
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E aí, se identificou? Compartilhe com a gente sua história.